O pequeno príncipe e a menina Jandira

 


Jandira caminhou da escola até sua pequena casa na periferia de Belo Horizonte e chegou exausta, mas precisava lavar a louça, varrer a cozinha e fazer o para casa, que seria uma arte, um desenho ou pintura, sobre o livro O Pequeno Príncipe, do autor francês Antoine de Saint Exupéry. 

Passava das oito horas quando ela finalmente pode pegar o resumo da história que fora xerocado e grampeado em folhas desgastadas pelas muitas mãos escolares que passaram por elas porque havia apenas dois exemplares do livro na biblioteca. 

Jandira leu que um piloto teve que pousar no deserto do Saara por problemas no motor do avião e lá encontrou um menino de cabelos dourados e lenço amarelo no pescoço. O menino era um príncipe de outro planeta, um asteroide na verdade, onde vivia sozinho, mas fugiu de lá porque brigou com uma rosa que era muito exigente ou - Jandira não entendeu bem – se era porque ele precisava encontrar um carneiro para que o animal comesse as raízes das árvores africanas, os baobás, que estavam destruindo o seu pequeno mundo. 

Jandira ficou curiosa, uai, ele não tinha pai nem mãe? Se fosse príncipe, seria filho de rei e rainha, e eles iam deixar uma criança sair assim sozinha  do planeta? A história estava mal contada…

Até descer na Terra, o menino havia passado por outros asteroides onde encontrou alguns personagens: um rei que acreditava mandar no universo, mas não tinha ninguém para lhe obedecer; um empresário que contava as estrelas e depositava o número delas na sua conta num banco; um bêbado que bebia para esquecer que era bêbado; um homem que cumpria a ordem de acender e apagar lampiões sem parar; e um geógrafo que nunca saiu do escritório para conhecer o mundo que descrevia em seus mapas. O príncipe achou aqueles homens estranhos, mas Jandira achou ainda mais estranho não haver nenhuma mulher na história…

Depois, na Terra, o menino encontrou uma raposa que não quis ser amiga dele enquanto ele não a cativasse. Jandira foi procurar no dicionário o que era cativar e ficou meio confusa, porque cativar queria dizer: “ficar ou permanecer cativo; perder a liberdade: por exemplo, alguns agricultores cativam animais selvagens; estar preso fisicamente ou moralmente: cativo de suas necessidades; sujeitar-se ou ficar sujeito a...” Jandira ficou pensando que não iria querer ser amiga de alguém que prende a gente. Raposa esquisita, pensou.

A raposa disse também que a gente fica eternamente responsável por quem a gente cativa, então Jandira pensou que isso era uma verdade, pois uma vez ela trouxe um filhote de gato que achou no depósito de lixo perto de sua casa e sua mãe disse que se ela quisesse ter um bicho em casa, então ela seria responsável pela comida e pelo cocô do gatinho. Ele morreu com a barriga estufada uns dias depois e Jandira fica triste sempre que se lembra disso, achando que ela não tinha cuidado direito do bichinho.

Outra coisa que a raposa disse foi que as coisas importantes são invisíveis e Jandira começou concordando com ela porque a gente não vê o som, não vê a eletricidade, não vê a gravidade, não vê a dor... Mas desconfiou que a raposa estava falando de outras coisas invisíveis, como amizade, amor e alma. Ah, - ela pensou - na sua casa todos acreditam em almas penadas e no diabo, porque ele toma conta da alma das pessoas e só sai delas quando o pastor arranca o demônio pedindo a Jesus com muita força e poder de Cristo. 

Quando o pequeno príncipe já estava com vontade de voltar para seu planetinha para tomar conta da sua rosa, - que Jandira já desconfiava que fosse uma mulher disfarçada, - apareceu uma cobra venenosa dizendo que seu veneno era capaz de fazer “as pessoas voltarem para a terra de onde vieram”. Bobo, esse príncipe, pensou Jandira: quem não sabe que veneno de cobra mata? Ele não entendeu que a terra era terra chão e não terra de onde ele veio? Ou ele queria mesmo morrer? Acabou que a cobra picou o menino e ele desapareceu, mas Jandira ficou na dúvida se o piloto inventou tudo aquilo, porque os escritores inventam histórias que as pessoas querem ouvir para vender seus livros.

Já caindo de sono, Jandira descobriu que no final do resumo da escola ainda tinha um pouco sobre a vida do autor, o tal de Antônio de Saint alguma coisa, que havia sido um piloto de fato e desapareceu numa missão durante a Segunda Guerra Mundial. Ela ficou com pena dele ter morrido assim, mas ficou intrigada: por que ele escreveu a história do pequeno príncipe no meio de uma guerra terrível e não falou nada sobre isso? Será que ele queria justamente fugir do assunto?

Nessa hora, alguém bateu palmas na frente da casa e Jandira abriu uma fresta da porta, por onde viu um velho bem velhinho, perguntando se podia falar com ela. A menina disse que não podia abrir a porta para estranhos, pois sua mãe ainda estava trabalhando fora de casa. O homem disse que ele não era bem um estranho para ela e mostrou o lenço amarelo no pescoço. Jandira tomou um susto: o lenço do Pequeno Príncipe!!! Não era possível! Isto é, pensando bem, era possível, sim, se ele não tivesse morrido, porque teria agora uns cem anos! 

Jandira, assustada, passou a tranca e perguntou do outro lado da porta o que ele queria. O velho disse que precisava voltar para o seu asteroide porque desde o encontro com o piloto no deserto do Saara ele andara vagando pelo mundo e pedindo ajuda para as milhões de crianças que liam sua história, mas ninguém havia conseguido ajudá-lo. E eu é, que vou te ajudar? – perguntou perplexa Jandira. - Você precisa libertar meu espírito deste mundo em que estou preso há quase um século... respondeu o velho. 

Depois de vacilar uns instantes, Jandira decidiu ajudar o pequeno velho príncipe, mas por trás da porta fechada. O que posso fazer? – perguntou. -  Descreva o mundo atual para mim, disse o ancião, pois nada vejo desde que o veneno da cobra me cegou, e lembro apenas daquilo que vi há mais de um século. Se for muito diferente do tempo em que vivi, vou-me embora de vez.

Jandira pensou um pouco e começou dizendo que ele e ela estavam na periferia de uma cidade grande, num país chamado Brasil, num planeta cheio de grandes armas atômicas, com muitas guerras e matanças acontecendo sem parar, inclusive na Palestina. Um mundo onde muitas mulheres ainda são assassinadas por machistas que dominam quase todos os governos. Que há racismo e gente muuuuuuuito rica e gente muuuuuuito pobre. Que o planeta está aquecendo rapidamente por causa da poluição e a mudança climática poderá matar bilhões de pessoas. Que as florestas estão sendo desmatadas e os baobás, - aqueles que você queria que os carneiros comessem no seu planeta, - lembrou Jandira, - agora estão ameaçados de extinção. 

Por fim, Jandira disse: E você é branco e eu sou negra.  

Fez-se um silêncio. 

Jandira perguntou: Oi… você ainda está aí?

Ninguém respondeu.

Ela resolveu abrir uma fresta da porta e viu sua mãe muito preocupada: - Jandira, por que passou a tranca na porta e demorou tanto para responder?


Lor  


Nota: o desenho acima foi feito pelo meu neto Pedro, de 13 anos, para um trabalho de escola sobre o livro O Pequeno Príncipe, em agosto de 2025.









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