Flow e a estética do fim do mundo
Vimos Flow,
o filme que recebeu o Oscar 2025 em animação, produzido na Letônia. É uma
grande obra de arte pela técnica admirável, por cativar a atenção, mobilizar
fortes emoções e deixar perguntas duradouras.
Pensando no seu impacto cultural sobre milhões de pessoas em
todo o mundo, saí do cinema mergulhado numa ambiguidade de sentimentos. De um
lado, as possíveis metáforas do filme despertaram em mim certos valores morais
estruturais, solidariedade, principalmente. Do outro, elas ativaram minha
consciência crítica sobre o contexto da história.
Comento alguns aspectos do filme sem precisar contar toda a
história, porque eles já podem ser percebidos no próprio trailer (clique
aqui).
Como dá para imaginar pelas cenas do trailer, é a história
de um filhote de gato fofinho e solitário que dorme numa casa - recém
abandonada pelos moradores humanos – onde há inúmeros monumentos aos gatos, e que
é colhido por um dilúvio súbito e se junta a outros animais – uma capivara, um
lêmure, um pássaro e um cão (seriam representantes típicos dos continentes?) – num
barco à deriva, onde a história se desenrola.
A onda tsunâmica - sem causa evidente - inunda o que parecem
ser vestígios de civilizações humanas, semelhantes a cidades europeias, templos
budistas, pirâmides maias e outras, por onde percorre a nau dos animais, sem um
destino. Também encontram uma baleia mutante que parece ser importante na
mensagem final do filme.
As relações entre os animais, que acontecem sem qualquer
diálogo explícito numa língua humana, são facilmente compreendidas à medida que
vamos conseguindo “traduzir” os sons das diferentes espécies em falas que
humanizam os personagens progressivamente. Aos poucos, se tornam uma equipe com
seus desafios para sobreviverem.
Este conjunto de dados – repito, já contidos no trailer - representa
a trama do filme e mesmo vendo o filme completo permaneço com algumas dúvidas. Antes
que venham me dizer que não devo levar a sério o filme, pois é apenas uma
fantasia, lembro que a fantasia é o terreno mais fértil para expressarmos a
nossa ideologia, pois é nas lendas, novelas, histórias em quadrinhos, filmes e contos
de fadas que revelamos nossa visão do mundo real distorcida pela ideologia
dominante em cada época.
Então, qual seria a causa do dilúvio? Talvez uma alusão à
elevação dos mares causada pelo aquecimento global? Mas não há sinais de calor,
ou de geleiras derretendo, nem poluição no ar causando o efeito estufa. Não há
fábricas nem sinais de uma civilização industrial capitalista, mas apenas ruínas
de civilizações mais antigas. Assim, essa ausência de História na história de
Flow nos faz concentrar na narrativa individual como centro da história, o
herói individualista e seus valores que justificariam os comportamentos dos
personagens.
Outra dúvida: o que teria acontecido aos seres humanos? Fica evidente que eles desapareceram um pouco
antes do dilúvio, pois mesmo no trailer podemos ver um desenho inacabado de um
gato sobre a prancheta do possível morador da casa e autor das esculturas
felinas. Então, teriam fugido para onde?
Para outro planeta, por exemplo, para Marte, onde Elon Musk quer criar uma
colônia? Não há sinais de seus corpos ou esqueletos e não sabemos seu destino
no filme, mas o barco no qual os animais sobrevivem é a única tecnologia humana
restante e funcional. Qual a metáfora deste legado dos humanes desaparecidos? Novamente,
sem História na história, os autores de Flow recorrem ao “era uma vez”, que
permite aos expectadores se afastarem da realidade (negando qualquer História)
para entrar no mundo da fantasia, onde tudo é coerente dentro da ideologia que
comungamos todes (especialmente o mérito individual).
Em busca do significado das metáforas iniciais do filme, - o
dilúvio e o desaparecimento humano, - acompanhei a luta pela sobrevivência - longa
e repetitiva - dos animais vagando sem destino, até o final, talvez de
inspiração bíblica, mas sem a pomba trazendo no bico o ramo de oliveira. Quem
ainda não viu, que fique atento à cena final depois dos créditos, a qual reabre
outra metáfora possível.
Seria a principal metáfora de Flow justamente a fantasia de
recomeçar o mundo, o desejo de encerrar a História humana que nos condiciona a
sermos o que somos hoje?
Flow parece ser mais um produto de sucesso popular numa
longa série de filmes, animações, livros e outros produtos culturais que tratam
de mundos pós-apocalípticos. O que nos atrai nesses roteiros de fim de mundo?
Seria o desejo de nos livrarmos da História humana que nos
revela a História da propriedade, da família e do Estado assim como da luta de
classes, do machismo, do racismo e do colonialismo na origens do capitalismo em
que hoje sobrevivemos?
Seria o ideal higienista de superar as limitações que nos
causam a Natureza, com nossa biologia, nossa evolução rastejante e nossas
mulheres que nos geram fracos e indefesos?
Estas possibilidades são consideradas no excelente ensaio da
escritora Jay Griffths, intitulado “Fogo, ódio e velocidade!” (ver
aqui), no qual ela demonstra como os ideais fascistas dos últimos 150 anos
se expandiram, tornando cada vez mais evidente a falta de empatia na política
liberal que gera o desejo psicopata da extrema direita pelo fim do mundo.
Talvez por isso haja tantos filmes e produtos culturais
sobre o fim do mundo que nos estimulam a esquecer esta sociedade complexa e
histórica em que nascemos e assim partirmos “livres” numa nave do Elon Musk para
viver em Marte.
Lor
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