Toda alegria
Para Luíza
Disse a menina,
saboreando seu primeiro sorvete,
depois da cirurgia que
lhe abriu o peito
para corrigir um
pequeno defeito
no coração, não na sua
essência,
que toda alegria é, afinal,
uma forma de resistência.
talvez por ela ter assim me alertado,
eu, que sempre desprezei o Carnaval,
fui atraído pela batucada numa rua perto de minha casa
no mesmo bairro onde,
dias antes,
outro policial covarde matou
Cristóvão,
um dos moradores de rua
que estorvam
nossas ilusões de classe média
era um pequeno bloco de foliões improvisados
apesar da lama que
ainda transborda
da barragem da Lagoa do
Nado,
das mineradoras em
Brumadinho
ou das telas no vale do
silício
reconheci o sorriso largo da porta-bandeira,
que trabalha como empacotadeira
no supermercado Brasil
apesar da dor
continuada e reincidente
de mil Marielles, Malês
e Marias da Penha
vi a felicidade do rapaz tocando o surdo com vigor,
como se aquele couro representasse
todos os demais dias do seu ano de motoboy trabalhador
apesar dos tambores da
guerra
continuarem sua marcha
da morte
por outras bandas e
faixas de gazas
e em meio às vozes embaralhadas pelo tosco carro de som,
imaginei ouvir um samba enredo
que cantava vitórias do nosso lado bom:
os impérios derrubados,
os escravizados libertados
e mulheres nascendo com menos medo
apesar do pânico geral
manifesto
de que chegaram ao fim nossas
humanas histórias
no reinado fascista de
um gringo indigesto
Apesar, apesar e
apesar de tudo, a alegria daquele simples bloco de rua
afastou por um tempo minhas
dores de velho,
disfarçou meus lutos
acumulados
e aquele samba renitente,
abriu alas na
tristeza
e me fez, de novo,
resistente.
Viva o sorvete e o
Carnaval, minha gente!
LOR
ResponderExcluirAcho q temos, talvez, a mesma afinação das cordas em dó: ecoam como lamento pela vibração dalgum desenho, contemplação, desconforto, resistência. Nosso estar no mundo, na ilusão de fazer valer uma parte do oxigênio geral que nos é dado. Por gosto e algum desgosto que surja. O desenho é o nosso jeito incondicional de atar e romper pedaços que encontramos no trajeto. Então, tanto faz se é carnaval ou natal, cerimônia do Óscar, você, de alguma forma sairá alinhavando retalhos e produzindo outros, sem sossego.
Sergio Campos
(Nota do LOR: meu amigo Sérgio, que homenageio com meu traço no desenho acima, é um dos maiores artistas plásticos do Brasil)
Lindo, lindo e lindo.
ResponderExcluirBom demais sorver este lindo poema em pleno carnaval. Parabéns, Lor.
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