A polarização é necessária?




Quando ameaçarem nos tirar o pão, 
devemos exigir com manteiga. 

Gu Ê Krig (1988) 



Não importa o resultado das eleições, aqui ou lá fora, continuaremos divididos. Ou sempre estivemos e eu não percebia a profundidade da divisão?

Até poucos anos atrás, havia em mim o sentimento profundo de que a humanidade era formada por uma única espécie, éramos todos irmãos. Podíamos eventualmente brigar por algumas coisas, mas no final prevaleceria a racionalidade e concordaríamos todos com determinadas ideias, as humanistas, é claro, e o mundo seria cada vez melhor. Apenas alguns indivíduos excepcionais seriam incapazes de compreender as razões que nos levariam a este futuro consenso, não por maldade, mas por serem vítimas de distúrbios mentais, sobreviventes de traumas insuperáveis ou aqueles criados na mais tremenda ignorância.

Quantos anos uma pessoa precisa envelhecer para descobrir que dependendo de suas origens (genéticas, sociais, históricas) as pessoas comuns se tornam diferentes o bastante para jamais concordarem em determinados assuntos? Precisei de quase setenta.

Fui educado precocemente na crença cristã da fraternidade humana enquanto crescia como homem branco de classe média, portanto, numa posição social privilegiada que não me permitia perceber ao redor as imensas desigualdades entre minhas supostas irmãs e irmãos. Aquelas pessoas, que conheciam na pele o que era a pobreza, racismo e machismo em que eram obrigadas a viver desde o nascimento, recebiam com incredulidade minhas ingênuas crenças solidárias defendendo nossa santa irmandade.

Livrei-me da religião católica ainda jovem, mas não me libertei do sentimento de pertencer à grande fraternidade humana propagada pelo cristianismo. Apesar de vir a entender intelectualmente a dinâmica das lutas de classes descrita por Marx, eu ainda conservava os capitalistas e os trabalhadores dentro da mesma espécie humana, como se fossem os tais irmãos, temporariamente afastados pela história e involuntariamente separados por fronteiras políticas e questões econômicas. Não conseguia conceber o fato de que nascer numa determinada classe social produz alterações mentais tão profundas que ao final de alguns anos de educação ideológica nos tornamos espécies sociais distintas. Tão distintas quanto um parasita e seu hospedeiro.

Compreendi que as classes não participam igualmente da distribuição da riqueza humana, porque uma delas se apropria da maior parte da riqueza gerada pela outra, e os usurpadores precisam ocultar este roubo da consciência dos explorados para manter o sistema de produção funcionando. Então, como estão em minoria e não haveria exército suficiente para controlar cada trabalhador (nem cada soldado), os capitalistas precisam convencer os trabalhadores (e principalmente os soldados) de que não existem classes sociais e sim uma grande família e a riqueza de uns seria fruto do seu próprio mérito. Ou seja, o espírito da Sagrada Família do cristianismo e os valores do capitalismo se auxiliam mutuamente no mesmo sistema ideológico e eu, apesar da minha oposição à exploração capitalista, continuava cristãmente convencido de que éramos todos irmãos.

Atualmente, parte da sociedade aceita plenamente esta ilusão de irmandade, que mascara a injustiça intrínseca do sistema capitalista, que é a impossibilidade prática (para a imensa maioria da humanidade) de alguém se mudar da classe social em que nasceu. Assim, assimilam e defendem com a vida o discurso mais importante da ideologia capitalista (que é justamente o inverso da sua realidade), a meritocracia: todos podem sonhar em ser ricos, pois a liberdade de competição (e não a igualdade de condições) permite que qualquer um de nós vença a corrida, basta que seja o melhor, e ao vencedor, as batatas.

A classe dominante tem conseguido impor esta sua visão de mundo à maioria das pessoas, mesmo aquelas exploradas brutalmente pelo sistema capitalista. Doutrinadas desde o nascimento, elas defendem, mesmo sem os usufruir de fato, alguns direitos supostamente decorrentes da meritocracia: o direito à propriedade privada dos meios de produção, ao lucro e à herança de grandes fortunas, por exemplo. Somos 99% dominados, mas uma parte de nós defende os direitos do 1% dominante!

Apesar de na realidade existirem apenas duas classes de pessoas, as que trabalham e as que exploram aquelas que trabalham, a humanidade está dividida em etnias, nações, bandeiras e pátrias criadas pelos interesses econômicos de longa data. Mantendo sua união internacional com liberdade plena para o capital (que não respeita fronteiras), nós trabalhadores somos mantidos em currais nacionalistas, manipulados e jogados uns contra os outros, podendo ser convocados, inclusive, para deixar nosso barraco e, transformados em soldados, ir morrer em guerras ou matar outros trabalhadores para defendermos a propriedade privada de um “irmão” bilionário em disputas econômicas com outro “irmão” bilionário.

Assim como eu, que estava convencido da grande fraternidade humana, muitas pessoas recusam emocionalmente o desconfortável conflito de classes. Se somos irmãos, a competição parece mais justa, pois temos uma certa base em comum, e aqueles que se esforçarem mais desfrutarão do reino da meritocracia. Se somos irmãos, não parece haver racismo, apenas diferenças naturais de competência para ficar rico. Se somos irmãos, não parece haver machismo, apenas diferenças naturais de papel entre irmãos e irmãs. Se somos todos filhos do mesmo pai, a pobreza e a riqueza seriam apenas uma questão de maior ou menor força de vontade.

Neste mundo ideológico, a família se tornou o valor supremo no discurso da direita, a Sagrada Família, em nome da qual tudo é moralmente justificável, até mesmo pertencer a uma máfia para dar poder e riqueza a seu clã. No entanto, a família é uma manifestação amenizada e justificada do egoísmo individual, um certo altruísmo restrito (e com fortes origens genéticas e evolutivas). No entanto, numa sociedade em que todos dependem de todos, o bem coletivo é, de fato, mais importante do que a família e o indivíduo. Numa espécie social como a nossa, sem o coletivo, nem o indivíduo nem a família sobrevivem, por exemplo, na sequência da continuidade do aquecimento global.

Assim vínhamos vivendo, mas desde que surgiram as críticas ao capitalismo e aconteceram os movimentos socialistas, está crescendo a consciência de que vivemos num sistema injusto de concentração de renda. Desde o final da Segunda Guerra Mundial, mais e mais pessoas estão sendo levadas à politização progressiva em busca de mais direitos, maior distribuição de renda e mais igualdade social. Como consequência desta demanda por direitos sociais, do outro lado, sentindo-se ameaçado, o sistema de dominação capitalista lança mão de todos os seus recursos, inclusive ideológicos como o cristianismo, para conter esta onda de reivindicações promovida pelo crescimento da socialdemocracia.

Talvez por isso estejamos cada vez mais polarizados politicamente, um sinal de que o verdadeiro conflito está se revelando, não entre irmãos, mas entre as classes: os explorados estão reclamando de um lado e os exploradores estão esperneando do outro para manter seus privilégios. De um lado, as chagas vivas da miséria econômica são expostas exigindo reparação; do outro, todos os recursos políticos e militares ao alcance do poder econômico são mobilizados para convencer a sociedade dos valores morais do capitalismo. No lugar da antiga ilusão de irmandade, cresce a percepção assustadora de que não é possível pertencer ao mesmo tempo aos dois grupos mortalmente rivais.

Não há neutralidade nesta guerra, mas ela é travada com armas diferentes pelos dois lados. De um lado, os trabalhadores (empregados ou não) precisam da democracia para construir seus direitos econômicos e sociais. Aliás, a democracia interessa apenas aos trabalhadores, pois é a única forma de conquistar seus direitos de forma duradoura, enquanto o capital se dá bem em qualquer sistema político, da monarquia dinamarquesa à ditadura chinesa. Então, os trabalhadores precisam e devem exigir democracia.

Do outro lado da trincheira, os capitalistas não podem discutir economia a sério sem mostrar a exploração que os sustenta, então o discurso ideológico da direita se desloca para temas, da chamada guerra cultural, como cortina de fumaça: a defesa da família, da religião, da pátria, da tradição e dos “bons” costumes. Assim, se aprofunda a polarização entre economia e discurso moral: programas sociais versus direito ao aborto, direito à renda mínima versus venda de armas, impostos sobre grandes fortunas versus guerra às drogas, fim do racismo e do machismo versus patriotismo, educação básica versus encarceramento, defesa da ciência versus domínio da religião e assim por diante.

Neste nevoeiro ideológico, nos digladiamos, mas o número de pessoas que acordam para o real sentido do conflito vem crescendo: há cem anos, quando o patriotismo, o machismo, o colonialismo, o racismo e a exploração sem limite dos trabalhadores e da natureza eram a regra geral e LEGAL, a oposição a estas normas era de uma ínfima minoria. Hoje, as vozes discordantes já são metades de diversos eleitorados.

Neste sentido, a política de Trump ou Bolsonaro seria a expressão da plataforma capitalista sem disfarces: a corrosão da democracia que interessa aos trabalhadores. No meio do caminho, as políticas moderadas de Joe Biden e Lula para botar panos quentes nas contradições, apaziguar a luta de classes e assim voltarmos a ser irmãos no cristianismo. Na outra ponta, a defesa radical do aprofundamento da democracia social, para alcançarmos a real igualdade de direitos.

Talvez seja tarde para se tentar cicatrizar uma ferida que sempre existiu por debaixo dos placebos e emplastros ideológicos: a imensa, histórica, cruel e dolorosa desigualdade social.

Se a polarização progressiva que temos vivido significa que a luta de classes vem se tornando mais explícita, então estaríamos tendo uma percepção mais verdadeira da realidade? O que parece melhor: enfrentarmos esta realidade da luta de classes ou nos enganarmos sobre a suposta fraternidade humana dentro do capitalismo?

Então, viva a polarização.

LOR

Novembro 2020



Obrigado ao meu irmão Ernesto Rodrigues pela leitura e discussões.

 





Comentários

  1. Ótimo texto. Claro, com uma linguagem de fácil assimilação.

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  2. LOR, cartunista de primeira, navega com igual talento pelas conturbadas águas da política, sociologia e história. Brilhante, atual e lúcida análise da sociedade e suas relações sociais. Abraços, Tarcísio Lemos.

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  3. Seu comentário me faz sentir menos só, Tarcísio. Obrigado

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