Cacopuntura
Há momentos em que me esqueço completamente que tenho setenta anos: durante o sexo, andando de bicicleta, desenhando, atendendo uma pessoa como médico, brincando com netos e netas, rindo com minha mulher ou escrevendo, como agora. Boa parte do meu tempo, certamente.
Quando, então, o envelhecimento insinua suas sombras e mofos na minha alma? A idade relativamente avançada aparece soberana nos intervalos entre aqueles momentos de profundo envolvimento emocional e psíquico, acima lembrados, e as atividades cotidianas, como me despir para o banho, a nova peça no dentista, aquele momento de doença ou quando retorno a locais onde gastei muita energia vital durante longos anos e dos quais estou hoje desvinculado, como o laboratório de fisiologia do exercício. Nestes momentos, que são poucos, sinto-me como os cacos de um estafermo, o boneco pendurado na ponta da vara do destino a servir de joguete numa vida sem sentido.
Os jovens também despertam em mim uma paramétrica do tempo, e imagino que eles se sintam cheios de energia, ignoram que têm um corpo perfeito, são despreocupados com a morte e acreditam que o futuro existe. Há diante da sua juventude uma certa nostalgia de mim mesmo, da energia infindável e excessiva para tudo, do corpo que me permitia prazeres e venturas diversas, quando o medo da morte vivia apenas no plano filosófico e o futuro eu tinha certeza de que seria capaz de transformar.
As mulheres despertam-me grande admiração pelos seus corpos, pela beleza do corpo feminino em suas mais diferentes versões, admiração esta que vem acompanhada de uma certa perplexidade, como se eu não tivesse sido capaz de admirá-las tão bem quando eu era jovem. Ou talvez a natureza mental masculina nos faça ter sempre a sensação de um permanente já mais vu diante do corpo feminino: Uau! Então é assim, que belo!!!
É uma admiração diferente do desejo sexual, um reconhecimento da existência maravilhosa do feminino, especialmente porque é inevitável que eu associe as mulheres, especialmente as mais jovens, à minha mulher, às minhas filhas e minhas netas. No terceiro milissegundo do meu olhar para o corpo feminino já não sou mais capaz de ver as mulheres como um objeto do meu desejo, como diria valter hugo mãe, buracos de prazer a serem preenchidos agressivamente, talvez algo dominante em meus tempos de macho alfa jovem. Hoje, diante de uma mulher, sou imediatamente levado a querer saber sua história, seus sonhos e tristezas, sua opinião política, seu trabalho, sua vida além daquele celular numa mão e uma criança pequena na outra.
Talvez, então, eu diga que o envelhecimento, naqueles momentos de percepção aumentada da sua realidade, seja uma espécie de melancolia: saudade daquilo que não se viveu. E que vai ficando claro que não será possível viver, dado que o tempo e a saúde vão sendo consumidos diariamente à minha revelia e a expectativa de vida autônoma se reduz.
Não que haja sonhos especiais que não vivi e que gostaria de ter vivido: nunca quis escalar os Andes, por exemplo, mas este desejo podia fazer parte dos meus quereres quando eu era jovem. É essa perda do potencial de sonhar, inclusive sonhos impossíveis, Cervantes, que se estabelece como a melancolia do envelhecimento para mim.
Ainda que possa me sentir semelhante àquele da mansarda que observa a Tabacaria em Fernando Pessoa, que não sou nada e nunca serei nada, neste exato momento não percebo em mim a raiva por envelhecer. Ao contrário, sou imensamente grato pelos privilégios que recebi da vida: quantos podem desfrutar da felicidade de ter sido um caçador de mim e encontrado, ao final, desarmado, a paz no respeito por mim mesmo e pelos outros?
Mas meu lado humorista não está levando este desaforo para casa, não quer aceitar de graça esta felicidade escancarada e suburbana, esse individualismo narcisista que ignora desde Trump até a epidemia de sarampo ou o pastor evangélico que acaba de me oferecer uma bíblia na porta de casa. E me faz a pergunta que julga ser muito esperta: você gostaria de ser jovem novamente?
Não, obrigado. Para viver o mesmo que vivi, não haveria as surpresas, os erros, desafios e epifanias. Para viver de forma diferente do que vivi, seria outra pessoa, outra história, não seria eu mesmo.
Uma vida é o bastante.
Muito bom. Triste, sóbrio, grande. Parabéns. Lúcido. Sobre o Mãe: há pouco lí meu primero parágrafo dele. Foi me enviado por uma amiga psicóloga de boa estirpe, que agora explora o yoga. Perguntei 'o que é espiritualidade', ela me enviou o texto, eu concluí: empatia social, maravilhamento, paz. Talvez este conjunto possa se resumir em 'amor'. Resumo: satisfaz, parcial e temporariamente, mas nada explica. Abs
ResponderExcluirLor, adorei seu texto. Simples, bem escrito, leve, sábio e revigorante.
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