O que importa no final? (texto e vídeo)



Minha neta Rosa, de sete anos, voltou da escola perguntando-me como era morrer.

Respondi que não tinha experiência própria (ela deu uma risadinha), mas eu supunha que seria uma espécie de sono profundo do qual a gente não mais acorda. Mas ela queria saber de que forma se morre, “tipo assim rápido ou devagar...”

Disse-lhe que existem muitas maneiras diferentes de morrer, algumas de repente, num acidente de carro, por exemplo, outras lentas, de velhice ou de uma doença grave, quando o corpo vai parando de funcionar, o cérebro, o coração...

Comentei que a maioria das pessoas atualmente morre somente depois de ter vivido muitos anos. Na nossa família, por exemplo, quase todas as pessoas que morreram já estavam bem velhinhas. Meu avô Ernesto, por exemplo, estava na casa dos noventa anos e muito fraco e magrinho, quase sem forças para se levantar da cama e precisava que minha avó Maria o alimentasse levando pequenas colheradas de sopa até sua boca. Num dia, vovô conteve o braço da vovó e disse: - Chega, Maria, cansei... Aí, ele tombou a cabeça para trás e morreu.

Houve um pequeno silêncio e a Rosa perguntou: Ele cansou da sopa ou da vida?



As grandes questões sobre como envelhecer e morrer fazem parte das ideias que o médico norte-americano Atul Gawande aborda em seu livro “Mortais – nós, a medicina e o que importa no final”.

Compartilho[1] aqui algumas anotações que fiz sobre este excelente livro, que se tornou um dos mais lidos nos Estados Unidos, na esperança de que estes comentários sejam um convite para sua leitura completa.



É preciso esclarecer que minha experiência científica com as questões do envelhecimento se limitam a alguns poucos estudos sobre a termorregulação na menopausa e as dificuldades cognitivas em idosos com neurofibromatose do tipo 1.

Portanto, estas reflexões são baseadas na experiência pessoal de me tornar idoso, a qual vem se consolidando nos últimos dez anos, e em algumas leituras, em especial o “Como e porque envelhecemos”, de Leonard Hayflick, um ensaio intitulado A casa da Memória de Larissa Macfarquhar na Revista Piauí de setembro de 2019 e o livro de valter hugo mãe “fábrica de espanhóis”. 




O que é envelhecer?
A história natural do envelhecimento se apresenta como um conjunto de modificações corporais, cognitivas, comportamentais, afetivas e funcionais ao longo do tempo, que acabam por levar à morte.

Estas alterações corporais e sociais podem ser suaves e causarem poucas limitações até o momento da morte, permitindo uma vida agradável e com autonomia, ou podem ser progressivamente disfuncionais levando ao sofrimento e à dependência de cuidadores.

Atul Gawande apresenta em seu livro o modelo de envelhecimento que mais o convence (e a mim também): do ponto de vista biológico, ocorrem falhas múltiplas e progressivas nos sistemas de reparo celular, até que num dado momento não há mais capacidade de correção de mais uma deficiência e ocorre a falência múltipla dos órgãos, ocasionando a morte.

Embora não possamos evitar este desgaste progressivo, há maneiras de gerenciar este processo minimizando alguns de seus efeitos. No entanto, infelizmente, a geriatria está em decadência como especialidade médica porque poucos jovens querem se dedicar a este ramo da medicina, e são os geriatras e responsáveis pelos cuidados paliativos que possuem o conhecimento de como administrar o envelhecimento de uma forma mais humana e acolhedora.

Do ponto de vista emocional e pessoal, envelhecer é uma fase da vida para a qual geralmente não estamos preparados. Ao invés de ser chamada de “melhor idade” e outros eufemismos, melhor seria admitirmos que se trata na verdade da perplexa-idade. De alguma forma, nosso cérebro e nossa cultura se recusam a admitir que o vigor dos 30 anos desaparece com o tempo inevitavelmente. 

Irrelevância crescente 

Do ponto de vista social, as alterações biológicas do envelhecimento são acompanhadas de transformações culturais que variam de acordo com as diferentes maneiras que as diversas sociedades tratam o envelhecimento, desde a reverência ao conhecimento acumulado pelos idosos nas culturas agrícolas tradicionais até o isolamento da velhice obsoleta pela tecnologia nos espaços urbanos contemporâneos.

O historiador Yuval Noah Harari, em seu livro “21 lições para o século 21”, apresenta uma extensa análise da situação para a qual estamos caminhando, quando a automação do trabalho e a inteligência artificial criarem legiões de pessoas irrelevantes para o sistema produtivo mundial, atingindo inclusive e especialmente os idosos. O que fazer quando a sociedade não precisar mais do trabalho dos idosos?

Talvez seja este sentimento que justifique o pensamento do poeta Donald Hall: “a velhice é uma cerimônia de perdas”.


Anos dourados?
Apesar das dificuldades existenciais inerentes ao envelhecimento, é melhor ser idoso atualmente do que nos anos passados, em função dos avanços nas técnicas de cuidados médicos e do poder aquisitivo das classes médias e de parte dos idosos. O envelhecimento representa um mercado de consumo poderoso, especialmente na medicina: 25% dos recursos da saúde nos USA são usados em 5% da população nos seus últimos 12 meses de vida, sendo que a maioria deste montante é gasta nos dois últimos meses.

No entanto, isto não quer dizer que a população idosa seja formada por velhinhos correndo maratona e executivos poderosos comandando grandes corporações. Isto é um mito, porque a maioria dos idosos se torna limitada física e psicologicamente a partir dos sessenta anos, assim como a própria sociedade discrimina a velhice.

Um dos destaques das ideias mostradas por Atul Gawuande é sobre aquilo que distingue um “pensamento idoso” de um “pensamento jovem”: é a estimativa que fazemos de quanto tempo de vida nos resta. Quanto menos tempo esperamos viver, maior nossa prioridade para nos dedicarmos a parentes e amigos íntimos. Quanto mais tempo imaginamos ter pela frente, maior será nosso desejo de conhecer outras pessoas, lugares e buscar novas experiências, dando menor ênfase no tempo passado com parentes e amigos mais próximos. 

O maior medo

Talvez o maior receio das pessoas que envelhecem (ou que se tornam doentes) seja o de perder a sua autonomia. Por isso Atul Gawande defende novos modelos de instituições para idosos, as moradias assistidas, que garantem que eles possam manter sua autonomia, privacidade, animais de estimação e, inclusive, desobedecer a prescrições médicas.

A noção do grau de fragilidade da própria vida é determinante para compreendermos os sentimentos dos idosos. No entanto, as clínicas de repouso geralmente respeitam pouco o que os idosos realmente desejam e suas instalações são voltadas para impressionar os filhos e diminuir seu sentimento de culpa por estarem supostamente “abandonando” seus pais. Vale lembrar o conceito hebraico que aprendi com meu amigo Yehuda Waisberg: “quando um pai ajuda um filho, todos riem; quando um filho ajuda um pai, todos choram”.

Por enquanto, a maioria das instituições médicas e clínicas de repouso trocaram a felicidade possível no final da vida pela segurança contra acidentes. Permitimos mais liberdade de arriscar às crianças do que aos idosos!

No entanto, é reconfortante saber que já existem diversas iniciativas em todo o mundo que buscam oferecer maior autonomia para os idosos no final da vida. Casas de transição, de repouso, de acolhimento, de convivência, todas elas tentando suprir a demanda por afeto, atenção e carinho que não podem mais ser oferecidos pelos filhos na sociedade moderna. Uma forma de evitar o sofrimento mútuo nas fases mais difíceis do envelhecimento.

Por enquanto, são apenas instituições de luxo que oferecem cuidados individualizados e permitem a autonomia dos idosos, mas acho que no longo prazo aquilo que hoje é luxo, amanhã se torna necessidade básica de todos (pensemos na luz elétrica, na geladeira, nos celulares...). No futuro, portanto, podemos esperar mais respeito aos sentimentos dos idosos. 



Os tipos de medicina

Esta tutela exagerada, intervencionista, medicamentosa e limitante sobre os idosos decorre da maneira típica da medicina tradicional, que é do tipo paternalista: o médico sabe o que o melhor para o paciente, portanto ele decide, inclusive com o apoio do sistema legal.

Atul Gawande diz pertencer a uma segunda onda de médicos se tornaram informativos: são aqueles que mostram as opções e o paciente decide.

No entanto, ele espera que possamos desenvolver uma nova forma de exercer a medicina, aquela que ajude as pessoas a alcançarem as suas próprias prioridades. Isto inclui o médico compartilhar as próprias incertezas e a possibilidade de não haver nada a fazer, sem que isto se torne abandono do paciente.

No entanto, a judicialização crescente obriga a medicina a não interromper tratamentos mesmo que o médico saiba que não funciona. 



O que é morrer?

Embora seja aparentemente óbvia a resposta, Atul Gawande nos mostra que há muitas maneiras de morrer, especialmente que há muitos caminhos diferentes entre uma doença grave (ou o envelhecimento) até o momento da morte.

Este caminho pode ser feito mantendo-se a autonomia pessoal ou, ao contrário, podemos ser arrastados para a submissão aos parâmetros médicos atuais, os quais retiram a decisão sobre sua própria vida das mãos das pessoas e as submetem a um sistema de controle intensivo e intervencionista (medicamentoso, cirúrgico, hospitalar) das fases finais da vida.

Atul Gawande nos mostra que a medicina e os médicos não estão preparados para lidar com a morte, não sabem aceitar a morte e nem reconhecer que há um momento de parar as intervenções inúteis e que apenas aumentam o sofrimento final dos pacientes.

Não são apenas muitos dos idosos que sofrem inutilmente num CTI até a morte, pois estudos científicos mostram que as pessoas que acompanham parentes que acabam falecendo nos centros de tratamento intensivo são mais sujeitas à depressão do que aquelas que acompanham seus parentes que falecem em casa com cuidados paliativos.

Portanto, aprendemos que não é possível evitá-la e não há como embelezar a morte. Assim, é preciso pensarmos nela como desfecho inevitável para tentarmos humanizar o sofrimento final de todos nós. 


Então, o que vale no final?

Atul Gawande acha que a vida somente tem sentido se ela se tornar uma história, e o final é importante em toda história. Assim, todos nós precisamos continuar sendo autores da nossa própria história, para que nossa vida valha a pena até o momento da morte.

Entre outras coisas, o livro “Mortais” indica caminhos para mantermos a dignidade no envelhecimento e na morte, entre eles devemos explicitar às pessoas próximas nossos próprios desejos quanto ao que queremos e ao que não desejamos ser submetidos.

No meu caso, deixei por escrito que, em caso de doença grave ou envelhecimento avançado, não desejo ser alimentado de forma artificial. Quando eu não mais desejar a sopa, é porque chegou minha hora de partir.


Sim, Rosa, o que importa no final é a sopa. 


Espero que até lá eu tenha a oportunidade de ter outras boas conversas com meus netos e ler muitos outros livros bons, como este do Dr. Atul Gawande.


Agradeço a leitura e sugestões da Dra. Sara de Castro Oliveira 



[1] Este texto constitui a base da minha participação no programa Café Controverso no Espaço do Conhecimento UFMG (ver video completo abaixo), no dia 28 de setembro de 2019, de 10 às 12 horas, a convite dos colegas Nilton Alves de Rezende e Dr. Rocksane de Carvalho Norton, professores da Faculdade de Medicina da UFMG e médicos da UNIMED BH.




A equipe do Espaço do Conhecimento fez uma edição com o material gravado e disponibilizou no Youtube. 
Os primeiros 5 minutos têm apenas áudio, mas depois a imagem aparece. Mais para o final do debate as imagens pararam de ser gravadas. De toda forma, o áudio está completo.







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