Sou um merda


Sou um merda. Não no sentido que algumas pessoas se sentem em relação ao tamanho do mundo.

Sou um merda porque acredito nos outros e acabo me ferrando. Sou daqueles que acreditam mesmo, para valer, de mudar o rumo da minha vida depois que alguém fala sério comigo e me convence de alguma coisa. Porque não consigo descobrir quando uma pessoa está mentindo.

Minha primeira lembrança de acreditar totalmente em alguém foi no dia em que Jânio Quadros, o candidato à presidência do Brasil, espetou uma vassourinha no meu uniforme de colegial dizendo que iria varrer a corrupção do Brasil.

E eu acreditei.

Jânio visitava o colégio interno de padres onde eu estudava e era perseguido pelos alunos mais velhos, que me chamavam de viadinho e me bolinavam o tempo todo. Bolinar era muito mais do que aquilo que todo mundo chama hoje de bullying. Fui reclamar com o padre diretor, que mandou sentar no colo dele e que assim tudo ficaria bem.

Eu acreditei.

Aliás, até os dezessete anos ia à missa, rezava muito e os padres diziam que o comunismo queria matar deus e acabar com os valores da família, liberando a sacanagem entre meninos e a masturbação. Ficava impressionado com o poder dos comunistas: ninguém explicou a eles que deus era onipotente, onisciente, onipresente e eterno? A parte da masturbação até que achei legal..., mas acreditei mesmo que o comunismo era obra do capeta.

Aí, conheci um cara numa república de estudantes, onde fui morar, que me mostrou que vivíamos oprimidos por uma ditadura militar e que os estudantes e camponeses unidos iriam derrubar o governo naquelas próximas semanas. Por isso, eu devia me juntar a eles. Eu acreditei.

Quando saí da prisão, um militante dum partido clandestino disse que a prisão era uma honra e que eu devia continuar a missão de libertar o povo brasileiro, participando do movimento estudantil na universidade. Diziam que as garotas do diretório acadêmico praticavam o amor livre. Foi fácil acreditar.

Preso novamente, o capitão interrogador disse que eu seria expulso da universidade e iria apodrecer na cadeia. Havia um decreto da ditadura militar que expulsava estudantes que se envolviam com política. Ao ser levado de volta para minha cela solitária, escoltado por dois soldados com fuzis, é claro que acreditei.

Inocentado por falta de provas no tribunal militar, pude concluir a faculdade e um dos professores disse que eu era um excelente aluno e por isso devia me dedicar à pesquisa científica, porque a carreira de professor universitário é nobre, muito respeitada, bem remunerada e a profissão mais importante para uma sociedade desenvolvida. Voltei a acreditar.

Um tempo depois, alguém me chamou para participar da fundação de um partido de trabalhadores, que seria construído democraticamente, de baixo para cima, completamente diferente dos outros partidos burgueses. Acreditei.

Dois anos depois, junto com uns outros dissidentes, tivemos que sair do tal partido porque um sindicalista famoso e sua turma assumiram o controle alegando necessidades da conjuntura eleitoral, mas disseram que continuariam socialistas e fora da corrupção. Acreditei, apesar de magoado.

Assim que amoleceu a ditadura, foi criada a Constituição de 1988 prometendo um país mais justo, com democracia econômica e igualdade social. Um punhado de deputados eleitos om dinheiro de fazendeiros, banqueiros, pastores religiosos, mineradoras, grandes empresas de comunicação e multinacionais assinaram e juraram cumprir a nova Constituição. Acreditei emocionado.

Tempos depois, na campanha do tal partido de trabalhadores para o governo federal, prometeram que se fossem eleitos revogariam a possibilidade de reeleição, fariam uma reforma política para acabar com a corrupção dos partidos tradicionais e aumentariam os impostos sobre os bancos e as grandes fortunas. Eu acreditei e votei.

Na reeleição, justificada pela necessidade de completar o trabalho iniciado no primeiro mandato, o presidente sindicalista prometeu fazer a reforma política, agora com o apoio de um grande partido tradicional, das empreiteiras e dos bancos. Tive um breve momento de desconfiança, mas como 84% da população acreditava nele, votei em banco, quer dizer, em branco.

Aí começaram a surgir denúncias de corrupção, compra de políticos, desvio de dinheiro de estatais, mas o presidente dizia não saber de nada e no meio da confusão tirou da manga uma mulher para o substituir, alguém inexperiente para governar, mas com a reputação de ser absolutamente incorruptível mesmo sob tortura. Não dava para não acreditar na honestidade dela.

Ainda deu tempo de ler um livro do sociólogo italiano Domenico de Masi, chamado “O futuro chegou”, no qual ele prova por A mais B que o Brasil já é o país do futuro, por causa de suas dimensões continentais, suas riquezas naturais fabulosas e, especialmente, sua diversidade étnica e religiosa em convivência pacífica num ambiente de liberdade democrática. Puxa! É claro que acreditei.

Mas a coisa se complicou quando o país afundou na crise econômica internacional e os banqueiros, fazendeiros, pastores, policiais e a grande imprensa não aguentavam mais uma mulher mandando, especialmente porque ela não conseguia mandar em nada mesmo sem o apoio do partido tradicional, que a elegera, mas que agora queria governar sozinho. Enquanto isso, um juiz processava o ex-presidente por corrupção e lavagem de dinheiro, mas garantia que ele, um juiz de moral, não tinha nenhum interesse político nesse processo. Eu acreditei nele.

Agora que a idade avançada chegou, olho para trás e descubro que tenho sido ingênuo, crédulo, um merda, enfim.

Mas aprendi a lição. O próximo sujeito que vier me espetar uma vassourinha no peito e dizer que vai varrer a corrupção do país, vou responder na lata:

- Ah, é? Ah é, é? Aqui ó procê!





Comentários

  1. Meu querido amigo Lor, as angústias e agruras do cotidiano são vividas na hora e entendidas depois. Tod@s brasilienses ou, pelo menos, aqueles que tem um pouco de atenção sabem que depois das queimadas do cerrado veremos uma flor que se destaca por ser a única e de um vermelho intenso. Igual a ela, tu brilhas por onde passa, nos instiga e inspira a sermos melhores. Obrigado e estarei na esperança de ver mais uma versão da flor que está a ser germinada em teu peito. Grade e forte abraço! do amigo Rogério

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