Médicos sem limites?
Tento compreender as atitudes recentes de alguns médicos e uma médica durante o adoecimento e falecimento da senhora Marisa Letícia Lula da Silva, que me causaram perplexidade e tristeza [1].
Tenho o dobro da idade dos médicos que se comportaram de forma extremamente agressiva numa situação em que acredito que deveria prevalecer a proteção profissional a uma pessoa doente e sua família. Desejo que estes jovens colegas vivam tanto quanto eu para aprenderem, e acredito que todos podemos nos transformar com a experiência, como eu venho aprendendo com o tempo “que a delicadeza é a mãe de todas as virtudes” [2]. E certas virtudes são necessárias para sermos bons médicos.
Não imagino que as pessoas que se formam em medicina sejam seres especiais invulneráveis aos impulsos humanos como os demais. Não penso assim. Mas somos, médicos e médicas, pessoas privilegiadas por diversas razões e os privilégios que recebemos, a meu ver, resultam em compromissos morais para com a sociedade que nos permitiu usufruir de alguns direitos que, infelizmente, ainda não estão garantidos para todas as pessoas.
O primeiro direito que usufruímos (e é ainda um privilégio) foi, para a maioria dos formados em medicina, termos nascido em famílias em condições econômicas boas o bastante para recebermos alimentação suficiente, cuidados pediátricos, escolas adequadas, recreação e lazer, ambiente familiar pacífico e habitação em zonas residenciais com menores índices de violência. Isto tudo nos garantiu a sobrevivência física e a capacidade intelectual para alcançarmos a idade de entrarmos para uma universidade.
O segundo direito ao qual tivemos acesso (também ainda um privilégio) foi, para a maioria dos formados em medicina, o fato de termos à nossa disposição uma universidade pública e (novamente) condições econômicas familiares para não precisarmos trabalhar durante a faculdade e, além disso, podermos prolongar a nossa capacitação depois de formados, realizando residências médicas e cursos de especialização.
No entanto, o grande privilégio que recebemos da sociedade é a confiança das pessoas que nos procuram em situação de sofrimento, de vulnerabilidade ou fragilidade. Talvez este seja o aspecto que torna a medicina e a enfermagem profissões especiais. Outras atividades profissionais também se deparam ocasionalmente com seres humanos em situações críticas, como psicólogos, bombeiros e assistentes sociais, mas a medicina e a enfermagem trabalham continuamente com pessoas debilitadas, fragilizadas, com dor, traumatizadas ou morrendo.
Portanto, para mim este é o aspecto moral que nunca poderia ser violado: jamais trair a confiança depositada em nós pelas pessoas doentes que nos procuram.
Trair sua confiança é não respeitarmos o seu sofrimento, é desumanizarmos o atendimento ou realizarmos procedimentos inadequados com finalidade monetária.
Também é fingirmos possuir conhecimento científico sobre uma doença que desconhecemos, é não nos atualizarmos sobre técnicas e procedimentos médicos, enfim, é colocarmos nossos interesses acima do interesse da pessoa doente.
Sim, estou defendendo que deveria haver um espírito de sacerdócio na prática da medicina.
Colocarmos a dignidade humana das pessoas doentes acima dos nossos próprios interesses é não permitir que nossas preferências pessoais em política, religião ou cultura interfiram no acolhimento e no tratamento das pessoas que nos procuram com problemas de saúde.
Como pessoa física posso apoiar as ideias de um determinado partido, mas isso não pode afetar minha relação enquanto médico com qualquer pessoa que pense de forma diferente. Não deveríamos agir profissionalmente de formas diferentes apenas porque alguém é de esquerda ou de direita, por causa de sua cor da pele, ou de sua classe social.
Penso que todas as pessoas, inclusive aquelas que se formam em medicina, não só podem como devem ter opiniões políticas e agir politicamente. No entanto, a partir do momento em que visto o jaleco, ou coloco o crachá ou assumo a função do profissional médico, os meus limites de opinião serão redefinidos por esta nova condição. Dentro dos limites do médico só serão adequados os comportamentos que respeitem o princípio fundamental dos interesses das pessoas doentes.
Existe uma organização que eu admiro profundamente que se chama “Médicos Sem Fronteiras” (ver AQUI), cujos relatos de imparcialidade de conduta em condições extremas, como guerras, genocídios e epidemias, servem de reflexão para todos nós.
Temos que recuperar nossa dignidade profissional antes que nos seja cassado o privilégio que desfrutamos da confiança da sociedade nos médicos e médicas que atendem a população brasileira.
[1] Agradeço as sugestões a este texto feitas por minha filha Ana de Oliveira Rodrigues e nossa conversa proveitosa, que me permitiram compreender melhor meus sentimentos e como me expressar de forma construtiva sobre um tema tão delicado.
[2] Se não estou enganado, este é um pensamento do filósofo André Comte-Sponville.
Tenho o dobro da idade dos médicos que se comportaram de forma extremamente agressiva numa situação em que acredito que deveria prevalecer a proteção profissional a uma pessoa doente e sua família. Desejo que estes jovens colegas vivam tanto quanto eu para aprenderem, e acredito que todos podemos nos transformar com a experiência, como eu venho aprendendo com o tempo “que a delicadeza é a mãe de todas as virtudes” [2]. E certas virtudes são necessárias para sermos bons médicos.
Não imagino que as pessoas que se formam em medicina sejam seres especiais invulneráveis aos impulsos humanos como os demais. Não penso assim. Mas somos, médicos e médicas, pessoas privilegiadas por diversas razões e os privilégios que recebemos, a meu ver, resultam em compromissos morais para com a sociedade que nos permitiu usufruir de alguns direitos que, infelizmente, ainda não estão garantidos para todas as pessoas.
O primeiro direito que usufruímos (e é ainda um privilégio) foi, para a maioria dos formados em medicina, termos nascido em famílias em condições econômicas boas o bastante para recebermos alimentação suficiente, cuidados pediátricos, escolas adequadas, recreação e lazer, ambiente familiar pacífico e habitação em zonas residenciais com menores índices de violência. Isto tudo nos garantiu a sobrevivência física e a capacidade intelectual para alcançarmos a idade de entrarmos para uma universidade.
O segundo direito ao qual tivemos acesso (também ainda um privilégio) foi, para a maioria dos formados em medicina, o fato de termos à nossa disposição uma universidade pública e (novamente) condições econômicas familiares para não precisarmos trabalhar durante a faculdade e, além disso, podermos prolongar a nossa capacitação depois de formados, realizando residências médicas e cursos de especialização.
No entanto, o grande privilégio que recebemos da sociedade é a confiança das pessoas que nos procuram em situação de sofrimento, de vulnerabilidade ou fragilidade. Talvez este seja o aspecto que torna a medicina e a enfermagem profissões especiais. Outras atividades profissionais também se deparam ocasionalmente com seres humanos em situações críticas, como psicólogos, bombeiros e assistentes sociais, mas a medicina e a enfermagem trabalham continuamente com pessoas debilitadas, fragilizadas, com dor, traumatizadas ou morrendo.
Portanto, para mim este é o aspecto moral que nunca poderia ser violado: jamais trair a confiança depositada em nós pelas pessoas doentes que nos procuram.
Trair sua confiança é não respeitarmos o seu sofrimento, é desumanizarmos o atendimento ou realizarmos procedimentos inadequados com finalidade monetária.
Também é fingirmos possuir conhecimento científico sobre uma doença que desconhecemos, é não nos atualizarmos sobre técnicas e procedimentos médicos, enfim, é colocarmos nossos interesses acima do interesse da pessoa doente.
Sim, estou defendendo que deveria haver um espírito de sacerdócio na prática da medicina.
Colocarmos a dignidade humana das pessoas doentes acima dos nossos próprios interesses é não permitir que nossas preferências pessoais em política, religião ou cultura interfiram no acolhimento e no tratamento das pessoas que nos procuram com problemas de saúde.
Como pessoa física posso apoiar as ideias de um determinado partido, mas isso não pode afetar minha relação enquanto médico com qualquer pessoa que pense de forma diferente. Não deveríamos agir profissionalmente de formas diferentes apenas porque alguém é de esquerda ou de direita, por causa de sua cor da pele, ou de sua classe social.
Penso que todas as pessoas, inclusive aquelas que se formam em medicina, não só podem como devem ter opiniões políticas e agir politicamente. No entanto, a partir do momento em que visto o jaleco, ou coloco o crachá ou assumo a função do profissional médico, os meus limites de opinião serão redefinidos por esta nova condição. Dentro dos limites do médico só serão adequados os comportamentos que respeitem o princípio fundamental dos interesses das pessoas doentes.
Existe uma organização que eu admiro profundamente que se chama “Médicos Sem Fronteiras” (ver AQUI), cujos relatos de imparcialidade de conduta em condições extremas, como guerras, genocídios e epidemias, servem de reflexão para todos nós.
Temos que recuperar nossa dignidade profissional antes que nos seja cassado o privilégio que desfrutamos da confiança da sociedade nos médicos e médicas que atendem a população brasileira.
[1] Agradeço as sugestões a este texto feitas por minha filha Ana de Oliveira Rodrigues e nossa conversa proveitosa, que me permitiram compreender melhor meus sentimentos e como me expressar de forma construtiva sobre um tema tão delicado.
[2] Se não estou enganado, este é um pensamento do filósofo André Comte-Sponville.
Parabéns, Luiz Oswaldo! Excelente texto que muito seria apreciado por seu pai,nosso saudoso Dr.José Benedito Rodrigues. Ele que foi modelo de ética e fez da Medicina um sacerdócio.
ResponderExcluirNão é um privilégio dos médicos, vide as ruas do Espírito Santo. COmo esperar comportamento Ético de pessoas que vivem e aprenderam seus valores de uma sociedade profundamente doente? Achar que a Universidade daria Ética para essas pessoas é manter a ilusão do ´esclarecimento´ de que conhecimento técnico é igual conhecimento humano. Como diria Paulo Freire: " Se a educação não é libertadora, o sonho do oprimido é virar opressor."
ResponderExcluirAcho que você também tem razão.
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