A febre
O jovem ajudante de pedreiro que trabalhava em minha casa agachou-se sobre um jornal da semana passada e comentou: - Deviam chamar o exército e prender todos eles!
Antes que eu pudesse dizer qualquer coisa, sua mulher o chamou no celular, informando que continuava numa fila de hospital com o filho ardendo em febre. Trocaram algumas palavras e o pai desligou, visivelmente preocupado. – A criança com 39 graus e eles ficam nessa demora para atender!
Sabendo que ele sabia que sou médico, tentei tranquilizá-lo: - Não se preocupe, a febre em si não tem problema. Geralmente ela não passa de um certo ponto. É um sinal de reação do organismo.
- Mas os médicos dizem que depois dos 39 o bicho pega...
- É, dizem mesmo, mas nós às vezes dizemos coisas sem muito conhecimento...
- Se esquentar o cérebro, diz que dá convulsão...
- Mas o risco de convulsão com febre é somente em crianças muito pequenas, com cérebro ainda imaturo...
Eu não queria usar qualquer tipo de argumento de autoridade, sacando minhas credenciais de 30 anos como pesquisador na área de termorregulação humana. Não queria simplesmente contrapor palavra contra palavra questionando o senso comum da maioria dos médicos, apesar de estar convencido de que meus argumentos foram construídos de forma bem fundamentada cientificamente. Imaginei ser possível continuar a conversa com o rapaz, tentando oferecer-lhe informações que o fizessem chegar às mesmas conclusões que eu.
- Andei estudando este assunto... A febre é uma forma do organismo se defender das infecções.
O jovem pedreiro me olhava, mas eu não sabia se ele estava realmente prestando atenção ou se apenas controlava silenciosamente a indignação pelo que acontecia com seu filho. Afinal, ele estava diante de um médico e que estava pagando seu trabalho.
- Fizeram vários estudos científicos. Num deles, os cientistas infectaram uns ratos com uma bactéria e deram remédio para baixar a febre para metade deles e não deram para a outra metade. No grupo de ratos que forçaram a febre baixar, mais ratos morreram do que no grupo no qual a febre pode seguir seu caminho natural.
O rapaz lançou-me um olhar tão incompreensível para mim quanto eu desconfiei que o assunto parecia ser para ele. Ouvira-me por educação, conclui - eu era o patrão. Desisti de continuar a conversa. Ele retomou o trabalho.
Sob seus pés, o jornal com a notícia da votação do impeachment foi se cobrindo de massa de cimento respingada.
Muito profundo, Doutor.
ResponderExcluirAbraços.
Glauber.