De Eva a Lady Sapiens


Dois livros recentes e muito interessantes mostram de forma original como mulheres e homens evoluíram ao longo de milhões de anos na sua organização social, no processo de reprodução e nas diferenças corporais. Ambos apresentam o tema de forma clara e bem documentada, embora com enfoques temporais e científicos distintos: “Eva, como o corpo feminino conduziu 200 milhões de anos de evolução, de  Cat Bohannon, e “Lady Sapiens, como as mulheres inventaram o mundo”, de Thomas Cirotteau, Jennifer Kerner e Éric Pincas.




Eva

O primeiro livro de Cat Bohannon traz informações abundantes que demonstram que mulheres e homens coevoluiram com capacidades cognitivas e motoras semelhantes, tanto para realizar tarefas cotidianas que exigem esforço físico como para enfrentarem os desafios cognitivos em comunidades caçadoras-coletoras e suas complexas estruturas sociais e culturais. Lançado em 2023 e já traduzido para mais de 30 línguas, o livro é uma abordagem biológica evolutiva dos aspectos neurocognitivos e sociais.

Ao longo do livro aprendemos sobre a evolução dos mamíferos nos últimos 200 milhões de anos que resultaram nos aspectos anatômicos do corpo das mulheres, dentre eles o formato dos ossos dos quadris adaptados ao parto e ao bipedismo, o útero, as mamas, a estrutura da vagina e do pênis evoluindo juntos para uma determinada finalidade reprodutiva, o surgimento do matriarcado, da monogamia e do machismo. 

Lady Sapiens, lançada em 2024 (depois do documentário com o mesmo nome), analisa o papel da mulher na evolução humana, com foco nos últimos 100 mil anos, com argumentos mais antropológicos e culturais.

Tanto as conclusões de Eva quanto de Lady Sapiens contrariam o senso comum científico - predominante desde o Século 19 - que tem atribuído maior importância evolutiva às atividades supostamente masculinas desde a pré-história (por exemplo, a caça e a pesca, guerras, produção de utensílios de pedra etc.), 

Além de ser uma fonte imensa de aprendizado, Eva trouxe inúmeros argumentos para uma hipótese que defendo há alguns anos, de que a evolução humana é feminina (ver aqui), pois a autora apresenta fundamentos que jamais imaginei, uma vez que baseei minha sugestão apenas na evolução da capacidade termo reguladora da espécie humana, assunto com o qual trabalhei como cientista por vários anos. 



No meu texto, dei mais importância retórica à evolução feminina, mas é claro que a seleção natural precisa atuar simultaneamente em ambos os indivíduos na reprodução sexuada, ou seja, tem que haver coevolução entre homens e mulheres. 

Matriarcado e patriarcado 

Não é possível resumir centenas de páginas de informações, a maioria delas inéditas (pelo menos para mim), portanto sugiro que leia Eva para conferir a hipótese central de Cat Bohannon para o surgimento do machismo atual: nossa coevolução teria ocorrido como resultado da pressão evolutiva para a formação de grupos sociais maiores, que exigiram cérebros maiores para lidar com a complexidade social, mas o aumento no tamanho do cérebro dificultou o parto por causa da conformação dos quadris à posição bípede humana, o que exigiu a formação de redes de apoio reprodutivo entre as mulheres, incluindo o conhecimento de parteiras e métodos de controle da natalidade, além da proteção das crianças por mais tempo - porque elas nascem com um cérebro ainda imaturo - durante uma infância prolongada.

Ou seja, foi necessária uma solidariedade profunda, ampla e antiga entre as mulheres, que teria formado uma sociedade matriarcal. No entanto, a necessidade de estabelecer relações duradouras com homens para proteger a si mesmas e às suas crianças da agressão de outros homens, teria dado origem à monogamia predominante em nossa espécie, com as mulheres trocando exclusividade sexual por proteção masculina e formando a família. 

A monogamia teria aos poucos permitido a formação de alianças entre os homens, antes mesmo do desenvolvimento da agricultura, ou seja, o machismo estaria presente já na época chamada pré-histórica. No entanto, se o machismo foi útil evolutivamente em determinada época, atualmente, segundo Cat Bohannon, ele estaria matando as mulheres e ameaçando a própria espécie humana.

A formação da família é justamente uma dúvida que trago desde que li na minha juventude “A origem da Família, da Propriedade e do Estado” de Frederich Engels. Engels relaciona a dominação das mulheres e o patriarcado com o surgimento da propriedade privada a partir do desenvolvimento da agricultura, dando origem à formação das cidades, aos estados, à escravidão, aos impérios e ao capitalismo. Infelizmente, Eva e Lady Sapiens não analisam especificamente este momento da nossa história.

Aliás, é interessante saber que ainda há entre nós culturas matriarcais que foram documentadas pelas jornalistas e cineastas Clara Deák e Joana do Prado (ver aqui a série).


Lady Sapiens

As referências científicas são menos abundantes,  mas concordando com um dos estágios da evolução da sociedade humana sugeridos por Eva, a equipe de autores de Lady Sapiens sugere que a posição das mulheres nas culturas antigas era de maior poder social do que eu supunha. Eles apresentam uma nova imagem das mulheres que viveram em sociedades pré-agrícolas, sugerindo que elas teriam sido mais parecidas com as mulheres Himbas da Namíbia e Angola (ver abaixo), do que com os estereótipos das mulheres arrastadas pelos cabelos como retratadas nas pinturas inglesas do Século 19. 




Enfim, Eva e Lady Sapiens são dois livros bons de ler, com olhares distintos, que nos ajudam a defender o feminismo político ampliando os argumentos científicos (biológicos e antropológicos), que podem fundamentar narrativas mais complexas - e verdadeiras - da situação das mulheres na imensa diversidade de culturas que a humanidade já criou ao longo de sua história.


É claro que eu gostaria de encontrar pessoas que já leram estes livros para uma boa conversa. 


Lor 


Agradeço a leitura, sugestões e dúvidas da querida Luíza de Oliveira Rodrigues.












 

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