#inexistente

O passado é apenas uma história que inventamos para acreditar que também existe o futuro, disse o homem imundo por trás de uma pilha de lixo em meio às árvores do parque, fazendo-me esconder num reflexo o celular em meu bolso e protegendo-o com a mão, como se estivesse sendo ameaçado de assalto por aquela aparição súbita do sem teto, que imaginei pudesse ele desejar para si o bem mais precioso que eu trazia comigo naquele momento, (apesar do desconforto insidioso e difuso que me causava instantes antes o ato repetido de clicar inutilmente em busca de novos e-mails e mensagens ou notícias), mas o homem não fez qualquer gesto nesse sentido e permaneceu imóvel como se refletisse sobre as próprias palavras, e ele parecia algo assustadoramente concreto movendo-se na lentidão típica dos corpos que possuem gravidade, ao contrário de mim, que me sentia despencar das nuvens, vindo de um outro mundo.

Ameacei deslocar meu pé direito para dar um passo de afastamento quase involuntário quando ele repetiu: o passado é apenas história inventada por quem acredita no futuro, o que parecia ser uma edição do pensamento anterior, talvez buscando o sentido exato, decidindo se abster como pessoa da crença ao se retirar do “acreditamos”, suprimido na segunda frase, assim como deletou “uma” que precedia história, banalizando a história ao torná-la inespecífica, da mesma forma que retirou “o” que antecedia futuro, o qual passou a ser qualquer futuro, um mero instante numa cascata de sucedimentos como o gesto do mendigo que entreabria a mão, deixando cair um pouco de terra que formava uma tênue cortina de pó na direção soprada pelo vento.

Meu primeiro passo começava a se completar em direção oposta ao homem e ouvi dele: o passado é invenção da crença no futuro, parecendo-me outra versão mais enxuta, mas também uma mudança substancial no conceito que ele elaborava, porque unificava na mesma suposição a existência do passado e do futuro, como se fossem tempos irmanados numa única falsidade decorrente de acreditarmos nessa crença, como na trajetória da humanidade ao longo das eras, quando imaginamos que aquele fóssil pertence ao passado e nós ao presente, como o sem teto e eu, simultaneamente reais enquanto existentes nanossegundo a nanossegundo apenas no mesmo e único presente.

O futuro é passado num instante, ele elevou a voz enquanto eu me esforçava para mover o pé direito na mesma direção na qual o esquerdo se adiantara, e percebi que ele concebera uma reformulação completa do sentido original da sua primeira fala, pois materializava seu conceito de forma independe de qualquer crença, numa espécie de exemplo autoexplicativo de como nem o passado nem o futuro existem, pois que um se transforma no outro num tempo tão exíguo que pode ser reduzido infinitamente a nada, restando apenas o tempo presente espremido entre o antes e o depois, uma compressão temporal tão extrema que levanta a dúvida se o próprio presente existiria.

Completei o primeiro passo e a inclinação de meu corpo fez com que novos passos fossem possíveis e eu me distanciei progressivamente do homem, da sua sujeira, do lixo ao redor, da sua fala autônoma e ele se tornou progressivamente ausente dos meus sentidos para reaparecer distorcido na minha memória, já confinado numa categoria de pensamentos denominados de coisas do passado, enquanto outras ideias surgiam num campo da mente reservado às coisas compreendidas como futuras, como o ato de voltar para casa ou retirar meu celular do bolso e procurar nele alguma mensagem, um e-mail, notícias do mundo virtual, qualquer coisa que me servisse de consolo para aquele momento de angustiante contato com outro ser humano.


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