Afronta



Para Luíza e Marco da Lígia



Da janela vejo o sol se ocultar por trás da favela, onde traficantes exibem as mãos visíveis do mercado.

Seguindo na mesma direção oeste, não terminou o dia em Brasília, mas os seus habitantes já encerraram o expediente e as possibilidades futuras pelos próximos vinte anos.

Nuvens douradas à esquerda deslizam sobre a praça, na qual refugiados venezuelanos disputam migalhas com pombos sujos pela fuligem que emana do tráfego intenso dos automóveis.

À direita, crianças obesas descem pesadamente de uma van escolar e entram entristecidas no prédio pelo playground sempre vazio.

Sobre os tetos dos apartamentos, andorinhas voejam inquietas por não encontrarem as árvores do ano passado.

Na casa ao lado, o casal idoso discute porque ele não quer tomar o remédio que prolonga sua doença e reduz sua aposentadoria.

Na outra esquina, o catador de papel descansa um pouco diante do carrinho de tralhas, que inclui uma bandeira nacional.



Tenho ímpeto de anunciar da janela que tanto o esplendor desta tarde quanto a miséria que surge das suas sombras hão de desaparecer quando o sol completar seu esfriamento.

E nada do que nos alegrou ou nos entristeceu fará qualquer diferença.

Retornaremos à poeira cósmica e a vida terá sido um brevíssimo interlúdio sem sentido no tempo incompreensível das galáxias.



Mas contenho minhas palavras e a ofensa que elas seriam para os habitantes da favela e da praça, os velhos, as crianças, o homem cansado e as andorinhas sem árvore.

São arrogâncias de quem possui uma janela, de onde ainda posso ver o sol.



(*) Foto feita com autorização do Seu Antônio, habitante do bairro Planalto

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