O pão de queijo que o diabo amassou

Damasceno e seus dois irmãos mais novos herdaram um pequeno sítio nas franjas da Serra da Campanha e criavam algumas poucas vacas, porcos, galinhas, patos, uma égua branca e um grupo de quatis que desciam da mata próxima para fuçar os restos da ração dos animais domésticos e acabaram por se tornar habitantes permanentes da propriedade, além de passarinhos e aves maiores, como pombas, gaviões e saracuras. Havia também um pouco de arroz, de feijão, milho, cana, uns pés de café, umas fileiras de verduras e folhas na horta. 

A habilidosa mulher de Damasceno transformava em sobremesas e potes de conservas a fartura de um pomar com laranja, manga, abacate, mexerica, jabuticaba, pitanga, goiaba, mamão e limão. De vez em quando, uma tilápia fisgada no pequeno açude, que se formara pelo represamento de uma nascente da água translúcida que descia da serra, completava o sustento e a vida pacata de Damasceno, sua mulher, duas filhas e seus dois irmãos.

Damasceno e sua família trabalhavam com muita disposição todos os dias, talvez um pouco menos aos domingos para acompanharem a missa numa capela próxima, e iam à cidade para comercializar os excedentes de seu sítio em troca de mantimentos que não produziam, como sal, açúcar, roupas, calçados e ferramentas. 


Damasceno gostava de seu mundo rotineiro e tinha especial apreço pelas vacas, pelos bezerros e por um quase touro, um zebu acinzentado e garboso, que ele vinha criando para ser reprodutor, que ele batizou de Presente de Deus, mas com o tempo se tornou apenas Presente. Damasceno gostava tanto de seu pequeno rebanho que, quando precisava se desfazer de um garrote macho para sobrar mais do pequeno pasto para as fêmeas que produziam o leite de todos os dias, protelava enquanto podia o momento da venda e se afastava para o mato sem coragem de ver o animal ser colocado na carroceria de um caminhão em direção ao matadouro, deixando a tarefa com os irmãos mais novos.

Damasceno e seus irmãos desconheciam quaisquer assuntos fora dos limites do seu sítio e fugiam o quanto podiam dos cabos eleitorais em épocas de eleições, gente mentirosa, como costumavam reclamar nas conversas da família, depois de terem acreditado em algumas promessas não cumpridas por vereadores eleitos. Damasceno não compreendeu de imediato os efeitos da industrialização da vida agrícola que alcançou sua região, inviabilizando um a um os pequenos sitiantes, cujos produtos não podiam competir em preço com aqueles que chegavam em massa de outras regiões aos armazéns da pequena cidade. Até que um dia Damasceno voltou para casa em sua charrete com os ovos, frutas e galinhas que levara para vender e não encontrara compradores e tomou consciência de que todas as suas fontes de renda, que vinham diminuindo progressivamente nos últimos anos, já não mais eram capazes de cobrir os gastos para manter sua vida no sítio.

Durante o ano seguinte a família de Damasceno tentou trabalhar dobrado, varando parte da noite na enxada e espichando a labuta enquanto tinham forças, mas, cada vez mais sem recursos, recorreram a alguns empréstimos com um conhecido agiota na região, o que agravou a situação porque a recuperação do sítio não veio ao encontro marcado com o principal e os juros. 

As duas filhas de Damasceno foram morar com uma parente na cidade para fazerem pequenos serviços, o que lhes garantiu a roupa para ir à escola por mais uns meses, mas tiveram que abandonar as aulas para trabalharem em tempo integral, uma como babá e a outra como caixa num supermercado, o novo tipo de armazém que fora inaugurado na região. Sentindo-se humilhado, Damasceno recusou parte do salário da filha para ajudar nas despesas do sítio, que já estava reduzido a uma sombra do que foram suas modestas riquezas. Um dos irmãos tornou-se chapa de caminhão, mudando-se de vez para o Triângulo Mineiro, de onde suas notícias rarearam até cessarem por completo. O mais novo foi para São Paulo em busca de emprego e ficou por lá vivendo de biscates e empregos temporários.

Quando viu que não havia mais jeito, Damasceno tentou sem sucesso vender o sítio e acabou por aceitar a oferta, de um sobrinho do sujeito que lhes emprestara o dinheiro, de saldar a dívida com o tio e receber uma diminuta casa na periferia da cidade, para onde se mudou e de onde passou a sair todos os dias em busca de trabalho. 

Sua mulher tentou, mas aos poucos foi forçada a desistir de lavar roupa para fora por causa de um problema no útero, que a obrigava a passar muito tempo nas filas do posto de saúde, depois no hospital e depois deitada em casa, sem condições de fazer grandes esforços. Damasceno dizia topar tudo, qualquer coisa que precisassem, tinha disposição para trabalhar, força e saúde, e assim se ofereceu por meses a fio sem encontrar um emprego, sobrevivendo a contragosto com uma cesta básica que a filha recebia do supermercado onde trabalhava.

Um dia, o vizinho dos fundos avisou que estavam contratando ajudantes no matadouro municipal e Damasceno sentiu um estremecimento percorrer seu corpo. Ele que gostava tanto dos bichos, das suas vaquinhas, de partejar os bezerrinhos, de cuidar das feridas de cada animal como se fossem pessoas vivas e falantes, iria querer agora meter uma marreta em sua cabeça e depois esquarteja-las e se sujar com seu sangue, cujo cheiro o acompanharia noite e dia feito um pesadelo? Não, não poderia fazer aquilo, agradeceu. No entanto, naquela noite não pregou os olhos ao lado da mulher que gemia por falta do analgésico que estava em falta no posto de saúde. De manhã, tresnoitado, foi até o matadouro e aceitou o emprego, onde sua função seria a de tirar o couro e limpar as carcaças depois que os animais fossem abatidos.

Um ano depois Damasceno tornara-se um homem calado e cabisbaixo, que levantava na madrugada, caminhava até o matadouro e empunhava sua faca afiada na longa jornada de trabalho, quando as peças de carne se tornavam pedaços disformes e quase irreconhecíveis como partes do ser vivo do qual haviam sido retirados há pouco, mas ele nunca se aproximava do local de abate dos animais.  


Ao final do dia, Damasceno voltava para casa, remendava coisas, tentava plantar uma pequena horta, cuidava da mulher e conversava em voz baixa com um vira-latas que passara a morar no seu quintal. Murmurava para o cachorro coisas sobre sua filha caçula que se fora para Campinas, sobre a mais velha que se murara para Três Corações com um homem e não queria se casar e sobre as lembranças da vida que levara no sítio que já não mais lhe pertencia.

Um mês depois que sua mulher morreu, no começo de mais um dia no matadouro, Damasceno ouviu um mugido vindo do curral que o deixou transtornado e o fez correr em direção ao ponto de abate aonde ele confirmou o que suspeitava: era o Presente, seu antigo touro reprodutor, agora um velho boi entre outros bois e vacas
assustados, que esticavam as cabeças com seus grandes globos oculares revirados nas órbitas, buscando aflitos por sobre os lombos dos parceiros de destino alguma saída que evitasse o corredor de tábuas, para onde eram tangidos em desespero, aguilhoados para que se movessem até o ponto em que eram abatidos um a um. Damasceno subiu na cerca de madeira e estendeu o braço na direção do velho animal, mas retirou a mão, baixou a cabeça e se afastou travando na garganta um grito que ameaçava lhe romper o peito e voltou para seu posto de trabalho. Apanhou o cutelo e começou a cortar uma carcaça sobre a bancada, mas a lâmina escorregou e seguiu com força em direção ao seu braço, provocando um corte largo e profundo que expôs a brancura dos ossos e o brilho amarelado dos tendões e se transformou numa hemorragia.

Damasceno saiu do pronto-socorro com o braço enfaixado e cambaleando um pouco por causa do sangue que perdera e da raiva que lhe retirava a direção do caminho de casa, onde ninguém o esperava. Desceu a ladeira do hospital, atravessou a praça da fonte luminosa e ao virar a esquina do Hotel Imperial encontrou o agiota que lhe tomara o sítio. O homem parou, olhou o braço ferido do outro, sua cara pálida e o cenho fechado e, hesitante, puxou assunto dizendo que Damasceno precisava passar um dia qualquer no sítio para ver como o sobrinho havia cuidado bem do lugar, que tinha melhorado as coisas, com piscina e tudo. Com a mão desimpedida Damasceno pegou uma pedra solta do calçamento e bateu com ela na cabeça do agiota que deu um gemido e caiu na rua onde se formou imediatamente uma poça de sangue por baixo de sua nuca.

Damasceno nunca mais foi visto na cidade e soube-se depois que ele fora morar com o irmão mais novo na periferia de São Paulo e ambos terminaram presos depois de assaltarem e espancarem um casal de judeus numa casa no bairro de Higienópolis. Damasceno teria morrido durante uma briga dentro da cadeia, depois de aguardar julgamento por muitos meses.

O sobrinho do agiota vendeu o sítio para uma fábrica multinacional de peças de automóveis, a mata foi derrubada, a nascente secou, o açude é hoje um estacionamento e os quatis se tornaram agressivos e reviram as latas de lixo nos arredores.




Advertência aos leitores incautos.
Depois de ler esta história, meu irmão Ernesto Rodrigues mandou-me este e-mail:

Mano,
O texto, como sempre, está impecável.
A história, devo dizer, é um concentrado asfixiante - a ponto de parecer implausível - de tragédias em todos os quadrantes da vida do personagem.
Mano, do fundo do coração, acho que a injustiça e a infelicidade - como a justiça e a felicidade - tem limites, mesmo na ficção.
Acho também que você não costuma dar chance aos seus damascenos de se virarem diante das dificuldades da vida.
Todos vão, impotentes e aprisionados pelo determinismo histórico, para o sombrio matadouro humano que você desenha do fim do túnel, em muitas das suas histórias.
Mano querido, acho que a vida não é assim.

Se fosse, não estaríamos aqui.

Ernesto

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