As últimas palavras

O senhor Matsumoto levantou-se subitamente, interrompendo a discussão sobre política entre seus filhos, que se arrastava durante todo aquele almoço de dia dos pais, apoiou as mãos sobre o espaldar da cadeira e fitou algo além do bolo de chocolate. Permaneceu assim até que o silêncio se estabeleceu na sala e era longinquamente interrompido apenas pelas vozes dos netos brincando no playground do edifício, para onde suas duas noras haviam levado as crianças.

Prestem atenção um minuto... o senhor Matsumoto falou em voz baixa. As coisas estão muito confusas para mim. O mundo é mais complicado do que eu pensava.... O que era importante na minha juventude, hoje não tem valor. Minha palavra já não vale nada. Então, a partir deste momento, não direi mais nada. Inclinou levemente a cabeça à frente, numa tênue simulação do cumprimento tradicional japonês, deu as costas a todos e se dirigiu para o quarto de casal e fechou a porta.

Depois de se entreolharem, a senhora Matsumoto murmurou: Ele anda assim. Tetsuo baixou os olhos: Ainda está triste com o meu casamento? Uma hesitação perpassou os lábios da mãe: Acho que ele já superou, ele até gosta muito da sua... companheira. Mário moveu os dedos fazendo aspas: Só “esqueceu” de convidar os amigos para a festa de casamento. Beto completou com um sorriso no canto da boca: E não tirou os olhos das duas bonequinhas vestidas de noiva sobre o bolo! Tetsuo espalmou as mãos sobre a toalha de linho e olhou de frente os irmãos: A culpa então é só minha? A senhora Matsumoto levantou meio tom na voz: Parem com isso. Não tem nada a ver com vocês. Ele diz que já viveu demais... parou de tomar os remédios.

Todos? Perguntou Mario e sua mãe balançou afirmativamente a cabeça. Tetsuo insistiu: Acho que não sou a única que traz problemas para ele. Beto avançou o corpo sobre a mesa:  O que você está querendo dizer? Que ele está aborrecido porque a crise ferrou com a minha empresa e que por isso eu vivo pendurado na aposentadoria dele? A senhora Matsumoto insistiu: Parem. Vocês sabem onde acaba esta conversa. Depois da minha quimioterapia o pai de vocês mudou... afastou-se de mim, como se a culpa da doença fosse minha. Fica falando em morte o tempo todo. Eu lá tentando sobreviver e ele dizendo que a vida não faz sentido, porque a gente se vai duma hora para outra...

A sala de jantar voltou ao silêncio. Mário retomou a conversa: Parou os remédios para o coração também? A senhora Matsumoto assentiu novamente. Acho que é coisa da idade mesmo... a gente fica muito só neste apartamento o tempo todo. Ele não gosta de internet, eu ainda mexo no facebook um pouco, mas ele não se interessa por nada...

Nem filme, nem o futebol que ele gostava, nada? Perguntou Mário. Só uns livros velhos que ele de vez em quando folheia... disse a mãe - e depois joga de lado resmungando que é tudo bobagem, que perdeu o gosto pela leitura. Beto abriu os braços: E aquele tanto de amigos que ele tinha? A senhora Matsumoto pensou um pouco e disse: Alguns morreram, outros estão doentes, mas a vida separa a gente...mesmo os que estão bem de saúde, ninguém mais sai de casa, ninguém procura ninguém.... Você mesmo, Mário, ele sente muito sua falta, desde que se mudou de cidade você aparece aqui somente uma ou duas vezes por ano. Mario se ajeitou na cadeira: É meu trabalho, mãe, o que eu posso fazer? Além disso, a Helena não gosta daqui, não gosta de ficar longe da família dela...

Beto serviu-se da garrafa de café e perguntou a Tetsuo: Você não acha que o pai devia ver um psiquiatra? A irmã também encheu sua xícara e a senhora Matsumoto adiantou-se: Tentei sugerir isso... ele disse que nenhum remédio vai resolver a droga da vida, nada vai parar o seu envelhecimento. Tetsuo completou: O problema da depressão é que a pessoa não tem nem mesmo energia suficiente para desejar melhorar... Mário interrompeu a irmã: Mas um psiquiatra não poderia avaliar o risco dele... se... se matar? Os quatro se olharam por um instante. Beto arregalou os olhos: Mãe, onde está aquela espada de samurai que o pai pendurava na sala? Tetsuo levantou-se abruptamente jogando a cadeira no chão e correu em direção ao quarto do casal seguida pelos irmãos e pela mãe. Bateram várias vezes na porta trancada: Pai! Pai! Abre a porta!

Depois de alguns instantes, o senhor Matsumoto girou a chave e abriu a porta. O que o senhor está fazendo? Perguntaram Mário e Beto. O velho olhou para cada um dos membros da sua família e moveu os dedos indicador e polegar sobre os lábios como se fosse o fechamento de um zíper.



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