Seleção digital

Posicionei o indicador sobre o local iluminado pela luz azul intermitente e aguardei a liberação do chip de meu carro para sair do estacionamento, segurando a sacola de compras que realizara um pouco antes, quando paguei as despesas por meio do mesmo sistema de identificação digital, uma vez que não mais havia cartões de crédito ou cédulas de dinheiro em circulação, e por isso me surpreendi quando o equipamento emitiu um sinal agudo e informou na tela que minha saída estava autorizada, mas havia uma pendência com meus dados e que eu deveria acessar meu cadastro geral para solucioná-la e que esta mensagem estava sendo copiada para meu celular, e que se não fossem resolvidos os conflitos de informações em quatro horas minha identidade estaria bloqueada em todos os sistemas eletrônicos. Isto significava que eu perderia o acesso a todos meus recursos financeiros, registros profissionais, autorizações para mobilização urbana e registros médicos de toda a minha vida. Um princípio de pânico ameaçou paralisar meus movimentos, pois soubera de casos semelhantes em que pessoas desapareceram do sistema e nunca mais tiveram acesso a qualquer direito como consumidoras, mas atribuíra eu estes casos excepcionais ao descuidado das pessoas com seus dados, possivelmente gente que tinha medo das modificações informáticas que foram sendo introduzidas em nosso cotidiano desde o século passado e se recusavam a se adaptar aos novos tempos. Nada a ver comigo, um entusiasmado adepto das inovações tecnológicas, que me mantive sempre atento a toda e qualquer novidade científica, implantando tudo aquilo que me parecia útil e possível no meu ambiente de trabalho, incluindo a identificação digital, que ajudei a introduzir no hospital em que trabalhei por longos quarenta anos. Enquanto voltava para casa, estes pensamentos se misturavam ao escaneamento mental que fazia de todos os documentos que eu digitalizara recentemente em busca de um possível equívoco ou distração que pudesse criar algum conflito com a base de dados em que eu estava inserido, e foi com certa ansiedade que posicionei novamente meu indicador sobre a luz azul do sistema de vigilância do meu quarteirão para ter acesso ao meu prédio, onde repeti o movimento na entrada do saguão principal, no elevador e na porta de meu apartamento totalmente automatizado, que ao perceber minha presença imediatamente acionou os equipamentos domésticos programados para minha rotina diária. Larguei as compras no chão e corri para o escritório onde abri o portal do cadastro geral internacional e vi na tela a mesma advertência sobre o conflito de dados pendente e a pergunta se eu desejava iniciar o processo de atualização de informações, ao que respondi afirmativamente ao reconhecedor de voz, sim, estava pronto. Em instantes surgiu na tela a informação e uma voz a repetiu em tom absolutamente neutro que eu me encontrava em situação civil irregular, porque optara por ter um filho mantendo relações sexuais com minha esposa e não seguira as normas legais de reprodução assistida com seleção de embriões em laboratório. Reli a informação e compreendi o absurdo que ela continha, porque meu filho já está com mais de trinta anos e a lei da seleção de embriões foi implantada há menos de duas décadas. Tentei introduzir esta correção no sistema, mas havia uma limitação de autoridade administrativa para que eu pudesse digitar a data de nascimento de meu filho. Busquei outras alternativas no portal de identificação securitária universal, mas todas elas exigiam que eu retornasse à página principal e resolvesse meu conflito de dados, alertando-me que restavam apenas duas horas e meia para que minha identificação digital fosse bloqueada e, caso isto acontecesse, lembrava a voz gravada, eu deveria me dirigir pessoalmente ao posto policial do setor para me recadastrar, levando todos os documentos exigidos, especialmente a comprovação com certificado digital do laboratório de reprodução humana onde realizara a inseminação artificial de meu filho. Tomado por uma ansiedade crescente, via o suor escorrer de minhas mãos e pingar sobre o teclado enquanto tentava soluções cada vez mais impossíveis, evidentemente, até que surgiu uma tarja amarela em flash na tela de meu computador indicando que meu tempo se esgotara.

Comentários

  1. Esse seu texto lembra muito os episódios da série Black Mirror, principalmente o 1º episódio da 3ª temporada.

    https://pt.wikipedia.org/wiki/Black_Mirror_(série_de_TV)

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