A avó do senador

A multidão ocupou toda a ladeira que vai dar no cemitério de minha cidade, espremida entre as casas pobres, botecos e lojinhas de porta única, com seus moradores acostumados à janela e à passagem de cortejos fúnebres quase todos os dias, mas nenhum como aquele, da avó do senador, que antes de esfriar no caixão já deram seu nome para escola, hospital e ponte.
Todo poderoso na região, veio gente de Brasília, prefeitos e políticos das redondezas, todos fazendo o máximo para serem vistos pelo senador e ao lado dele, que recebia ruidosos e intermináveis tapas nas costas e outros sinais de relações antigas em claras insinuações de grandes façanhas cumplicitárias em passagens vividas, que comprovavam a amizade profunda que todos correligionários tentavam demonstrar, disputando o espaço ao redor do homem órfão e escanteando adversários derrotados que cumpriam o doloroso dever de prestar também suas homenagens, rivalidades a parte, num momento de tanta dor pela morte da velhinha aos oitenta anos macerados por um câncer arrastado culminado em morte aliviante e esperada. 
Acostumei em minha família a ter a certeza de que se conhece um homem pelo número de pessoas que comparecem ao seu enterro, que sentem sua falta e o admiram no momento do acerto de contas e das palavras de despedida, dos discursos repletos de mesóclises e lágrimas abundantes de parentes e amigos, um modo de pensar que eu descobriria anos depois também ser cultivado entre os Ianomâmis, cujos grandes homens são aqueles que deixam saudades e sua vida é um longo treinamento para este momento final. 
Se todas aquelas homenagens estavam acontecendo para a avó do senador, um de meus irmãos antecipava o que presenciaríamos no velório do próprio, quando isto viesse a ocorrer na devida embora ainda totalmente inesperada hora, e vislumbrava a população acorrendo ao funeral do senador em quantidades de gentes nas dimensões de uma peregrinação a Meca, dada a potência do político e suas relações íntimas com a camarilha no poder municipal, estadual, federal e, quem sabe, até nos Estados Unidos, como o próprio divulgava sestroso entre uísques. 
Mas apenas uma geração depois da morte da avó do senador o mundo havia passado por mais uma de suas grandes revoluções culturais e a internet já ligava as pessoas de uma forma diferente, remexendo os currais eleitorais e tornando obsoletas algumas formas antiquadas de fazer política, descartando velhos cabos e sargentos e obrigando a todos a uma adaptação dos discursos aos novos meios eletrônicos, aos quais apenas os senhores da Casa Grande estão se ajeitando à custa de muita grana paga para a nova elite de assessores digitais, despesa esta que o senador desdenhou de fazer. 
Nesse meio tempo, uma onda moralista tomara conta do país e criminalizara em jornais nacionais certos grupos que usaram de recursos públicos de forma ilegal nos mesmos esquemas que seus adversários sempre fizeram desde a primeira república, mas este crime, mal feito, agora se tornara álibi para os rearranjos do poder sob as botas escandalosas da justiça federal divinamente tomada de espírito missionário e evangélico. 
Nesse redemoinho inesperado, o senador neto órfão perdeu também muitos padrinhos poderosos depois de passar de amigo dos tapas nas costas para desafeto notório de um dos principais eugenistas defensores da moralidade, que pretendia tomar dele uns cargos na previdência social para redistribuir entre parentes próprios desempregados, combatendo assim a desigualdade de renda familiar. 
O senador tentou resistir ao que pensava ser apenas uma maré baixa e foi gastando seus cartuchos em velocidade exponencial, porque a cada revés sofrido ele dobrava a aposta até que em poucos meses nenhum correligionário de peso compareceu ao último dos seus famosos churrascos num sítio perto de Lagoa Santa, onde oferecia aos convidados, todos homens, meninas contratadas em boates de Belo Horizonte. 
Amargurando delações premiadas com o bilhete da má sorte, o senador sem avó foi definhando em declarações e entrevistas para a televisão, até sua própria morte desmerecer um mero comentário no MG TV quando embriagado veio a provocar um acidente de carro perto de Varginha. 
No seu enterro havia apenas os parentes próximos e uns primos vindos de Goiás que estavam meio por fora dos novos tempos, mas mesmo eles velaram o senador por poucos minutinhos: compromissos de força maior, alegaram.

Comentários

Mais visitadas

A última aula do Professor Enio

Machistas graças a deus

Querido Ziraldo